Nina Simone completaria 83 anos neste mês: conheça a história da voz feminina e negra que desafiou o

Nascida no dia 21 de fevereiro de 1933, como Eunice Kathleen Waymon, em meio à pobreza e ao racismo americano, no qual ouvia “você somente será boa em certas coisas”, conquistou o respeito de muitos com sua habilidade no piano clássico e voz peculiar, tornando-se visível para o mundo inteiro. Uma voz que muitos não conseguiam definir, pois ao mesmo tempo em que marcava toda sua força feminina, havia um incisivo toque barítono: grave, viril e aveludado.
O seu potente corpo negro comportava cicatrizes de extremos traumas, em aspectos de sua vida como profissional, social e amoroso. Seu primeiro contato com a discriminação foi com o racismo nocivo daquela época. Sua primeira professora de piano era branca e isso a surpreendia, não pela sua cor, mas pelo fato dela ser extremamente amável. Em um momento da história em que negros eram segregados na sociedade, calados pelos brancos, ela tinha sua professora que fazia o oposto: impulsionava o talento da pequena Eunice, para que ela brilhasse naquele universo.
Ainda muito jovem, precisou trabalhar fora de casa, para poder arcar com os seus estudos de piano que não poderiam ser interrompidos, afinal, aquele era o laço que enleava todas as suas qualidades; isso ela sentia desde cedo. Aquela srta. Waymon já podia ecoar as suas notas clássicas através de seus dedos flutuantes, atendendo pedidos para tocar diversos estilos musicais. Até que o seu público – ainda pequeno – passou a aclamar para que ela cantasse também. Esta proposta causou um certo estranhamento, pois seu propósito era ser apenas pianista. Uma pianista clássica. Até que ela se permitiu a esse novo talento e assim nasceu uma estrela: Nina Simone – nome artístico criado para lubridiar sua mãe, que rejeitava seu trabalho em bares noturnos e não podia saber de suas saídas para cantar.
Em 1963, Nina foi a primeira pianista clássica negra a se apresentar no Carnegie Hall – lugar em que ela almejava tocar como principal objetivo. Este dia foi a chave que abriu as portas para sua carreira deslanchar e se tornar sucesso mundial. A cantora já passava por um processo de transformação no seu estilo musical e a pianista clássica havia se tornado uma cantora que expressava toda a profundidade dentro de si.
Nina Simone sofreu traumas em seu casamento com um policial, que a agredia e a violentava frequentemente, tornando-se o primeiro empresário da cantora; sua dependência naquele relacionamento abusivo ficava cada vez maior. O marido não manipulava somente o seu psicológico, mas também seu físico e seu talento. Para ele, Nina deveria ser a melhor cantora da época, aquela que iria conquistar todos os prêmios e atenção do mundo. Ela dizia que o amava e, mesmo que não sentisse mais prazer com aquele homem, a esperança de que ele não faria mais aqueles abusos a mantinha naquele cenário triste.
O ano de 1965 foi de muitas transformações, em função do Movimento dos Direitos Civis. Nina viu a oportunidade de poder esbravejar todo o seu sofrimento desde que nasceu, de romper o silêncio que não a permitia nem de reclamar por ser pobre e negra – isso seria um confronto com os brancos e ricos. E, se algum negro ousasse gritar “não irei mais fazer isso”, corria o grande risco de ser morto. Nina sabia que muitos compartilhavam dessa mesma dor e isso foi o estopim para que ela usasse a sua música como veículo de voz para as opressões sofridas e pela comunidade afro-americana. Com as afirmações “Nós vamos moldar este país, senão nunca mais será moldado” e “a sociedade americana é um câncer que precisa ser exposto, antes de ser curado”, Nina Simone foi levada pelas atividades dos direitos civis.
Esta mulher, cheia de fibra, queria impressionar o mundo e fazer o público senti-la, fazer com que as pessoas saíssem de seus shows em pedaços: “Eu quero entrar nesse covil das pessoas elegantes, pedantes e metidas, com suas ideias velhas e presunçosas, e levar todos à loucura”, afirmava Nina. Naquele momento, ela se sentia realizada em poder lutar a favor de seus direitos e acender os holofotes para quem precisava de atenção. Entretanto, sua sina com as questões sociopolíticas começou a prejudicar sua carreira, pois ela ameaçava os opressores e deixava extremamente claro que ninguém a calaria mais.
Mesmo com o sucesso do Movimento dos Direitos Civis para algumas questões, o processo de evolução do país seria muito longo. Nina percebeu que, mesmo sendo uma figura pública e com potencial de voz, a elite poderosa sempre conseguia arrumar uma maneira de silenciar aqueles que se manifestavam. E a censura ofuscou o brilho da cantora. Com isso, sentiu-se na necessidade de viver em um lugar que se identificasse de fato. Libertou-se de seu casamento abusivo e se mudou para África, com sua filha, onde considerava o seu real lar.
Lisa Simone Kelly, sua filha, morou por algum tempo com uma família na Libéria, pois Nina era ausente em função das suas diversas viagens a trabalho. Até que ambas foram conviver juntas novamente e aquela mulher, que sempre sofreu agressões, que foi humilhada pela vida e pelo seu marido, tornou-se uma mulher/mãe tão quanto violenta. Um período de extrema conturbação e conflitos psicológicos, no qual gerou fortes sentimentos e ideias de suicídio em sua filha, Lisa: “Ela deixou de ser meu conforto, para ser o monstro na minha vida”, afirmava. Aos 14 anos, a jovem voltou para Nova York, indo morar com seu pai e ficou muitos anos sem ver sua mãe. O continente africano não trazia retornos financeiros para Nina, mas voltar para os EUA – no qual nomeava ironicamente de “Estados Perdidos da América” – era algo que falava ainda mais forte, pois ela não queria mais viver em um país que a rejeitava, que a censurava de ser quem ela realmente era. Decidiu-se morar na Suíça e, com um olhar triste, perdido e cansado, fez o seu primeiro show na terra nova.
Essa mudança representou o seu pior período – sua vida estava em repleta desordem por causa das dificuldades financeiras –, então mudou-se para Paris. Em uma entrevista para um programa francês, Nina confessou que deveria ter se tornado apenas a primeira pianista clássica negra, pois seria mais feliz. Não mudaria o fato de ter participado dos movimentos civis, porém, algumas canções que lidavam com essas questões foram o divisor de águas de sua carreira. Justamente por serem muito polêmicas, a indústria da música decidiu puni-la, boicotando todos os seus discos. Mais uma vez, o sistema havia conseguido calar e gerar um sentimento de culpa em uma pessoa que buscava apenas ter os direitos iguais. Nina foi mais uma mulher negra que se sentiu enfraquecida por tentar buscar o seu espaço no mundo. Não com relação ao seu talento, pois ela já havia ganhado o respeito como cantora e trabalhou até os seus últimos dias, mas pelo fato de ver que o mundo ainda agia de maneira seletiva e opressora – a manipulação do poder consegue fazer com que o oprimido se sinta culpado e arrependido.
Em função de toda sua trajetória, Nina adquiriu alguns distúrbios psicológicos, como uma psicose maníaco-depressiva – também nominada de bipolaridade –, fazendo com que sua postura diante seus problemas e sua agressividade fossem esclarecidas. Ela estava em um estado de tamanha gravidade, que através de incentivos dos amigos, passou a se tratar com medicamentos, pois sua vontade de viver era maior. Seus remédios poderiam afetar a sua destreza no piano e a sua voz enrolaria, mas mesmo assim, Nina conseguiu retomar sua carreira. A música “My Baby Just Cares For Me” foi um salto para que ela voltasse a ficar em evidência, pois esta canção se tornou trilha sonora de uma propaganda de perfume da Chanel. Aproveitou o momento para viajar pelo mundo, pois saberia que aquela seria a sua última chance na vida.
Nina faleceu em 2003, logo após ter completado 70 anos. Uma morte lamentável de uma mulher brilhante, corajosa, vigorosa e verdadeira. Apesar de um caminho solitário, Nina conseguiu fazer com que a sua voz difundisse pelos ouvidos das pessoas, através de suas letras intensas e questionadoras. Realizou seu trabalho com amor e dedicação, pensando não somente em seu sofrimento, mas em um sofrimento comum. Representou a luta por direitos, contra o racismo, a desigualdade social e o machismo. Mesmo que tenha sido calada por diversas vezes e mesmo que tenham a levado para o fundo do poço, Nina se reergueu e conseguiu deixar um legado de pessoas, de diversas gerações, que jamais esquecerão a sua passagem por aqui.
Dois dias antes de morrer, Nina Simone recebeu um diploma honorário do Instituto Curtis de Música – escola que se recusou a recebê-la quando tinha 19 anos, apenas pelo fato de ser negra. Um golpe racista da época, que fez com ela nunca tivesse conseguido superar. Este fato confirmou que a sua luta de 70 anos nunca foi em vão.